Poema do Mês

(Atividade dinamizada pelos professores da Equipa da BE, Paula Geraldes e Ramiro Anjos)

Ano letivo 2011/12


Junho 2012


in redes.moderna.com.br

Morre lentamente,
quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente,
quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente ,
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos, 
quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor, ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente,
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente,
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco e
os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções, 
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente,
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece,
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar.


Pablo Neruda





Abril 2012







ABRIL DE ABRIL 


Era um Abril de Amigo Abril de trigo 
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus 
Abril de novos ritmos novos rumos 

Era um Abril comigo Abril contigo 
Ainda só ardor e sem ardil 
Abril sem adjectivo Abril de Abril 

Era um Abril na praça Abril de massas 
Era um Abril na rua Abril a rodos 
Abril de sol que nasce para todos 

Abril de vinho e sonho em nossas taças 
Era um Abril de clava Abril em acto 
Em mil novecentos e setenta e quatro 

Era um Abril viril Abril tão bravo 
Abrir de boca a abrir-se Abril palavra 
Esse Abril em que Abril se libertava 

Era um Abril de clava Abrir de cravo 
Abril de mão na mão e sem fantasmas 
Esse Abril em que Abril floriu nas armas 

Manuel Alegre



Março 2012





Fevereiro 2012



Janeiro 2012

O ECHO


Adão e Eva. Mabuse, Século XVI

Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
- Outra que não Ella chamára tambem por Elle.

                 Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1' (texto original)

Dezembro 2011
 
Chove. É Dia de Natal 
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Novembro 2011

 


HISTÓRIAS DE MARINHEIROS

Um poema de Tomas Tranströmer, Prémio Nobel da Literatura 2011







Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.


Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, mais ténues que fumo de cachimbo.


(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.


Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).


Outubro 2011
Poema da Biblioteca
Silas Corrêa Leite

Sou cheia de cavidades, conteúdos, somas
Tábuas paralelas, segurando sonhos
Sou alta, larga, profunda – com glórias
Carrego das vidas, todas as histórias

Sou aquela que registra a própria civilização
Sou mais importante do que o pão
Sou forte, plena cortejada e vaidosa
Sou cheia de luz, em verso e prosa

Tenho brilho por ter romance de alguém
Sou altamente cultural também
Sou a que guarda os tesouros da terra
O Reino das palavras, na Paz e na guerra

Sou a que só se desfaz por acidente
Por incêndio - ou demente
Tenho páginas de rostos no meu Ser
Em belo acervo de aventura e prazer

Sou a que é certa por linhas certas
O mundo mágico dos Poetas
Sou a maravilhosa biblioteca
Reino da fantasia para mentes abertas.


Fonte: http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20080510131435AAuv0jE 
Setembro 2011


http://fotos.sapo.pt

Sentir Transmontano
 

No hermetismo das palavras inertes
Jazem arqueológicas erupções humanas
De ternura.

Janelas rasgadas espaços amplos
Emoções fluidas emergem de entre tojos
E ervas de brandura.

Nas insónias do tempo vago
Crescem nos olhos colinas de sorrisos
Ar serrano.

Nesta nudez da verdade
Visão imensurável de tranquilidade
O homem

Sente-se transmontano.


                   Joaquim Ribeiro Aires



Ano letivo 2010/11




Sophia de Mello Breyner Andresen
Fonte: Wikipédia

As Amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.


Junho 2011
  
Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só 

António Ramos Rosa

Maio 2011


Vai-te, Poesia!
Deixa-me ver friamente
a realidade nua
sem ninfas de iludir
ou violinos de lua.
Vai-te, Poesia!
Não transformes o mundo
descarnado e terrível
num céu de esquecer
com mendigos de nuvens
famintos de estrelas
e feridas a cheirarem a cravos
— enquanto os outros, os de carne verdadeira,
uivam em vão
a sua fome de cadelas
e de pão.
Vai-te, Poesia!
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.
Vai-te, Poesia!
Não quero cantar.
Quero gritar!




José Gomes Ferreira



Abril 2011


As Portas que Abril Abriu
José Carlos Ary dos Santos


 
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam





























Março 2011

Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
Eugénio de Andrade



Fevereiro 2011
Sísifo


Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Diário XIII

Janeiro 2011




O Sonho

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos








 
 Dezembro 2010

NATAL

 
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre




 Novembro 2010





Com Fúria e Raiva
                                 
                                          Com fúria e raiva acuso o demagogo
                                E o seu capitalismo das palavras

                               Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
                               Que de longe muito longe um povo a trouxe
                               E nela pôs sua alma confiada

                                De longe muito longe desde o início
                                O homem soube de si pela palavra
                                E nomeou a pedra a flor a água
                                E tudo emergiu porque ele disse

                                Com fúria e raiva acuso o demagogo
                                Que se promove à sombra da palavra
                                E da palavra faz poder e jogo
                                E transforma as palavras em moeda
                                Como se fez com o trigo e com a terra

                                                        
                                     Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"



Outubro 2010

                            Liberdade

                                Ai que prazer
                                Não cumprir um dever,
                                Ter um livro para ler 
                               E não o Fazer!
                               Ler é maçada
                               Estudar é nada.
                              O sol doira
                              Sem literatura
                              O rio corre, bem ou mal,
                              Sem edição original.
                              E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal,
                             Como tem tempo não tem pressa...
                             Livros são papéis pintados com tinta.
                             Estudar é uma coisa em que está indistinta
                            A distinção entre nada e coisa nenhuma.
                            Quanto é melhor, quando há bruma,
                            Esperar por D. Sebastião,
                            Quer venha ou não!
                           Grande é a poesia, a bondade e as danças...
                           Mas o melhor do mundo são as crianças,
                           Flores, música, o luar, e o sol, que peca
                           Só quando, em vez de criar, seca.
                           E mais do que isto
                          É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças
                          Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"